Guerra Civil
- Manuela Torres
- 12 de mar. de 2019
- 3 min de leitura
Atualizado: 29 de mar. de 2019

Havia um consenso entre as publicidades brilhantes da Wall Street, os rádios prestativos acoplados nos táxis e os folhetins há tanto aposentados, mas que agora pareciam novidade outra vez. Todos diziam que a data era 14 de abril de 2024 e que, nesse dia, a internet caiu no mundo todo.
As autoridades da China, da Rússia e de quem mais se denominasse nação, recorreram à telégrafos, telefones e até cartas. Os correios não se sentiam preparados para tamanha superlotação. E o que dizer das lojas vazias? Com gerentes aos berros. Mas nada se podia fazer se não era possível passar o cartão.
As modelos tão decepcionadas, de repente ser bela já não tinha tanto valor. As longas dietas, as tardes de crossfit, as lentes mais caras, sim, não havia mais porquê. Os vlogs também sentiam que haviam deixado de ser profissão, mas sem real receio, pois a internet não podia simplesmente desaparecer.
Foi aí que no dia seguinte, soou como se todos tivessem dormido, de dia no Japão e à noite na América. Ou todos haviam se distraído, ou entrado em consenso sobre acampar, quem sabe ler e escrever bobagens, fato é que os veículos do mundo sumiram, como some a água em uma panela quente. As pessoas olharam para o céu e viram nele as nuvens, olharam para as águas e lá estavam os peixes, mas os carros haviam dado a partida e sabe Deus por que galáxia andavam agora. Enfartaram donos de montadoras e quem tinha automóveis relíquias na garagem. O apego era tão grande, que as ruas de súbito pareceram enormes e os furtos de bicicleta foram os maiores em escala global. Os donos dos estábulos não estavam preparados para tamanha população em busca de alugar cavalos. E as ruas de Paris, Nova York e Caraguatatuba ficaram cheias de bosta, de mula, égua e cavalo.
Eis que no terceiro dia, o presidente já cumprimentava os próprios vizinhos, e a gente do Sertão foi ser couch de cavalgada em São Paulo. Alguém precisava faturar, porque há sempre o que faturar em crises. Haviam tantas crianças nas ruas, como se ali fosse lugar para brincar, e até quem tinha videogame, sentiu vontade de experimentar o calor que brota do chão.
Então fez uma semana e o planeta entrou em guerra civil, que piada era essa da natureza, de questionar a evolução? Eles pregaram bandeiras em mísseis e dispararam para o alto, com a mira no coração da atmosfera. E houve um silêncio profundo, como se a vida fosse contar um segredo, só se ouvia um fio de foguete que depois de um minuto explodiu. E então caiu sobre o mundo uma chuva petulante e desastrosa, que mexia com o imaginário, de tudo que já se viu.
Todos os crimes, a vaidade, as belezas, foi como um jato de revelação. Quem matou quem na década de 80 e quem mentiu sobre o quê. Quantas florestas morreram e quantos rios soterraram. E se dizia por todo canto “Meu Deus, meu Deus, o que somos nós? ”. E então caíram os pneus, os volantes e os rádios prestativos acoplados nos táxis, como se a Terra cuspisse o que restou do caroço. E foi caindo tudo, assim, sobre as nossas cabeças, já pesadas de tanta informação, sei que uns morreram, outros não, enquanto choviam retrovisores, insinuando que olhássemos para trás.
E os padres rezavam. Os monges rezavam. Os pastores rezavam. Os caciques rezavam. As senhoras rezavam. Os milionários rezavam. Para que não fosse o apocalipse. Para que só fosse mais tarde, como se as almas não fossem mesmo se levantar nessa hora. Mas uma calma milenar pairava sobre os cemitérios e quem já havia partido ainda descansava num leito eterno. Aquela conversa era com quem estava de pé. Com quem havia lançado os foguetes.
Então em 21 de abril, quando caiu o último dos pedaços do céu, o povo constatou que havia voltado o sinal. E as grandes nações acharam que foi pelas bombas que mandaram para o espaço, e que somos realmente capazes de comandar esse universo. E ninguém mais clamou por Deus. Os templos estavam vazios num domingo. Correram todos pro quarto, pras salas vips e áreas conectadas dos shoppings, postar suas filmagens, suas reações, suas falcatruas. E naquelas ruas do mundo, repletas de carros caídos aos pedaços, sujas de folhetins feito santinhos em dia de eleição brasileira, restou apenas os cavalos à deriva e seus longos rastros de bosta.
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