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RICHEBOURG

            Existe algo de podre em mim.

Os médicos disseram à minha mãe que esse corpo sucumbiria em algo em torno de três meses. Isso são dozes semanas e quatro dias, eu sei exatamente. E sei, pela única razão de que já se passaram doze semanas e três dias. Ao todo foram duas mil e oitenta e oito horas em que eu morri aos poucos, em um gradiente decrescente e mórbido.

Já nas primeiras doze horas perdi meu apêndice. Não liguei. Ainda não conheci um ser humano que se importasse realmente com o apêndice. A maioria nem reconhece sua existência. Vivemos em um mundo com completos ignorantes quando se trata do apêndice. Pois bem, a verdade é que não nos damos conta de que ele existe até que o percamos, pois somente nos importamos com o que já foi. É como a vida, ela só é essencial porque se esvai. No sétimo e oitavo dia, contaram-me que outros órgãos também estavam com problemas e na décima segunda tarde, a bonita médica, que era triste, disse-me calmamente “você vai morrer”. E eu achei lindo o sotaque dela. Achei porque, simplesmente, se o que dizia era verdade, então queria ver beleza em todos os segundos dos meus escassos minutos. E desde então eu contaria, como um gênio da matemática, todas as batidas dos monitores e frequências de meu coração. Tudo porque, na verdade, adorava brincar. Reconhecia que se pensasse demais em situações assustadoras e a bateria da minha vida acelerasse então o monitor cardíaco, a quem apelidei carinhosamente de Charlie, aumentaria sua velocidade também em uma música macabra e sedutora. Nesses momentos eu naturalmente sabia que a morte tomava vinho tinto e, por mais que não me agradasse vinho, cada vez mais me vinha tentado a me embriagar por aquela cativante melodia. Então as enfermeiras chegavam e eu contava a elas uma história qualquer de romance. A frequência normalizava e as duas, a criativa e a mordaz, deixavam-me em paz. Para elas o que mais importava era que Charlie se comportasse. Para mim, eram as frações de tempo nele existentes.

O médico interessante, de quem a enfermeira mordaz gostava, veio conversar comigo doze horas mais tarde, de homem para homem e contou-me segredos, sobre eu nunca mais há de ir a lugar algum. A ironia me fez um afago gentil e eu só podia refletir em como o médico estava errado. Em três semanas fui de Londres a Pequim e conheci pessoas que jamais imaginara nos dias de minha vida que não contei. Um parisiense que era especialista em circos e uma criança, tão branca, que detestava maçãs. Os chineses, ao contrário do que todos dizem, não comem cachorros e isso me fez pensar que jamais entenderia os chineses. Porque, quando se nasce no ocidente, você até pode conhecer o oriente, mas jamais o entender. É como um filho, que sabe o que é ser pai, mas não o compreende de verdade. Ou um rico, que anos mais tarde deite com os pobres e escreva sobre eles, não está em seu universo por completo. Não entendemos. Não me consola saber que em cada milímetro de terra e água deste planeta não há quem entenda a morte, não há quem saiba qual seu vinho favorito ou o que ela é. E eu cansei de metáforas, elas me enojam desde que conheci Jack, o favorito. Sujeito que sorria com o superior esquerdo e vinha de outra época, num momento em que ninguém ouvira falar sobre o que é ser eterno e o mundo só via o cinza no céu ao sinal de chuva. Jack era um bom sujeito e com ele eu visitei Istambul e outros lugares ainda mais exóticos. Nessas minhas dozes semanas, só lamentei não ter ido além e ultrapassado as fronteiras gravitacionais. Por mais que fizera uma humilde amizade com um astronauta, também chinês, ir ao espaço requeria um tempo de aprendizado que eu já não tinha. Pouco a pouco meus órgãos iam ficando menos numerosos ou menos funcionais...

Lindsay Maria era francesa, mas vivia no tropicalismo abaixo de capricórnio e era naturalizada com samba e outras variações diferentes de sua cultura original. Lindsay beijava em vermelho e sorria em azul. Desde então, meus dias contados passaram a palpitar em rosa, com uma leve inclinação para o violeta. Soube por carta, também, que curiosamente tanto o astronauta chinês, quanto o parisiense que conhecia circos, Jack anacrônico e outras personalidades a mais, começaram a maquinar suas complexidades em tons distintos de alaranjado. Então, em uma distração notei que, já havia feito mais em morte do que em vida. As emoções afloravam mais e mais a cada vez que o cheiro estragado de minha urina contaminava minhas vias nasais e essas, por sua vez, ardiam inflamadas por uma dor ainda mais profunda, que provinha do interior da alma, aquém do que se pode a olho nu ver. E eu sentia tão intenso o cheiro de podre que em mim estava entranhado como perfume de mulheres que adormecem no passado. Sentia aquele corpo virar carbono e ainda que meu escárnio por metáforas seja de admissão pública, não pude deixar de desejar, tanto quanto desejei beijos vermelhos, que meu sangue avermelhasse mais. Mais, mais e mais. Eu ansiava ser vinho, durar mais, oxidar mais, envelhecer mais. Viver. Então ria, divertido com a ausência total de sentido. Era tudo de uma obsessão tão inquieta e igualmente ridícula, mas eu ainda soava maravilhado mais que qualquer enfermeiro, médico ou paciente ali. Era notável meu fascínio para com aqueles rostos tristes. Perguntava-me em vão quando a vida optara por se esvair dali: Olhos vazios de pouca abstração e quase ou sem nenhum adjetivo. Jack diria que eram todos como velhas “tevês” e que a qualquer momento poderiam ser desligados.

Estranhamente em minha décima semana chorei e supreendentemente foi bom o fazer. Eu chorei tanto que Charlie precisou chamar as enfermeiras e, ainda assim, somente parei de berrar quando percebi que a enfermeira mordaz também o fazia. Parei e em seguida ri. Senti-me grandioso por desenvolver naqueles seres alguma espécie de emoção. Não me passou pela cabeça que a senhorita mordaz chorava por ver o médico interessante aos beijos com outra personagem aleatória, e que os olhos desta mencionada também vazavam como cachoeiras por um motivo que eu jamais saberia. Então, em um momento, todos no hospital choravam. Assim como nos presídios. E nas fazendas e nas escolas. Crianças em orfanatos choravam, assim como soldados no campo de batalha e inocentes nos de concentração. Um chinês chorava no espaço, uma franco-brasileira lagrimava por envelhecer e nos asilos, pessoas velhas choravam. Nas igrejas e nos senados. Choravam os circos do mundo todo, até os de Istambul e Madagascar. Pessoas que não conheciam apêndices, tal como as que não os tinham, naquele dia também choravam como bebês que acabaram de nascer. E o mundo estava agora recém-nascido, como no princípio, onde só havia mar. E nem um enfermeiro, estudante universitário ou mesmo pajé jamais ousaria oferecer a outro alguém um soro caseiro, porque não era água com açúcar o segredo e sim, doce água com sal. Meus lábios, no entanto, tremiam em uma triste, nostálgica e louca gargalhada e sacudia-me freneticamente contente porque o mundo chorava. Colocava para fora tudo o que necessitava. Agora todos tinham adjetivos e jamais o céu estaria cinza por outro motivo senão chuva. Assim, em minha décima segunda semana, no terceiro dia, quando em um cliché romântico o céu também chorou o início de meu fim, eu sabia com exatidão quantos segundos ainda me restavam. Pedi ao médico interessante que beijasse a enfermeira mordaz e ele o fez com os olhos inchados. E ela foi a primeira alma a rir depois de mim. E o beijou com tanto gosto que não percebeu quando Charlie entrou em convulsão e apitou rápido, rápido, rápido. O médico, agora sem jaleco, também não se atentou quando o apito deu lugar a um assovio mórbido, infinito e de uma nota só. O mundo não percebeu quando a morte me disse “os melhores vinhos são os mais caros e antigos”. E ninguém jamais entenderá como os segundos a mais que tive após essa simples frase, fizeram-me diferença. Pois, não se compreende o que nunca se viveu. É por essa razão que não entendemos a morte e qual seu tão estimado Richebourg.

E isso é tudo porque odeio metáforas.                                    

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