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O Doador

 

 

Fez sete dias na semana passada.

Olhei de soslaio novamente para o relógio que contrastava uma, das tantas paredes brancas daquela sala. Os toques dos ponteiros vinham me incomodando há um certo tempo, o que significa que o objeto que me tira do sério também serve para medir a longevidade dessa irritação.

Arfei aborrecido.

A sala estava quente e as pessoas pareciam distraídas, completamente alheias aos insistentes ruídos do relógio.

Havia um senhor lendo a edição de hoje, com afinco, pousou o olhar sobre o caderno de esportes e lá se deteve até terminar de alimentar seu cérebro com conteúdo de primeira e assim dobrar o jornal sobre as pernas. Sequer notou o editorial sobre a Faixa de Gaza e os conflitos na Síria. Isso fez com que eu suasse frio, duplamente incomodado, meu trabalho me iludia com falso reconhecimento e talvez fosse mesmo a hora de mudar os planos.

Duas mulheres conversavam, assuntos chatos, rotineiros, entediantes e banais; um adolescente se entretinha com um jogo que, se não me parecia seriamente rotineiro, não se deixava por um segundo de também ser chato, entediante e banal.

Eles estavam matando o tempo e eu queixava-me em silêncio por ser incapaz de fazer o mesmo.

Catorze dias, treze horas e o maldito relógio me lembra a cada instante dos segundos.

Ela deu as costas para mim e eu pude ver sua nuca exposta, havia cortado ainda mais o negro cabelo, agora tinha fim logo abaixo das orelhas, mas manteve a franja, não somente por questão de estética, é que já era parte do seu caráter.

E eu me lembro de não gostar de todos os seus detalhes, mas como papel machê dissolvido em água, essas certezas tornaram-se menos sólidas, até que eu apenas pudesse me render à destruição que a ausência dela me proporcionava. Ignorando tudo e qualquer que pudesse ir contra ela. Nada era importante.

A faixa de Gaza e a Síria também não eram importantes. Eu escolhi esse tema para poder falar da verdadeira batalha que eu sentia. Ora vejam só, no que me tornei, acredite se quiser na magnitude do meu egoísmo. Pois saiba, ainda, que a conversa das mulheres e o jogo bobo do garoto bobo, nada disso tem mais para mim a mínima das importâncias. Meu senso crítico, há dias morto, tenta ser um cadáver que avisa, que opina, que diz “Eduardo, não”, mas está obscuramente enterrado ao lado da razão. Aqui jaz Eduardo 87-2017 e não me fale de exagero, nenhuma das palavras existentes é capaz de expressar a grandeza da morte. Assim não me culpo por engasgar com as hipérboles, são mesmo sufocantes quando não cuspidas.

O guichê chama meu número.

Nós, homens modernos, somos muitos e Eduardo é nome comum demais. Tornamo-nos números. “Diga-me seu número de identificação” e nós dizemos todos os dígitos do nosso telefone.

Mas ela não era número e, se por ventura fosse, seria um bilhão. Algo astronômico, difícil de se medir, mais impossível ainda de se admitir, que falte letras para contar e certeza para apostar.

-Veja, – digo para a moça que me interroga com o olhar, essa parece ter pressa, mas em vão, pois, a pressa também não me interessa - agora que se foi eu endeuso sua memória, eu danço na chuva e pinto-me com o sangue do nosso extinto pecado.

Não ouve resposta, as paredes cegavam-me com o branco estúpido de suas tintas, insistindo em retratar o vazio de um jovem hoje morto.

-Preciso saber se aceita doar seus órgãos.

Oh séria. Como podia tratar com poderosa seriedade tamanha estupidez?

-Meus órgãos – repeti. Não foi uma pergunta.

Mas ela concordou, ainda assim.

-Sim, seus órgãos – repetiu.

-Para caso eu morra – conclui.

-E outra pessoa possa viver – apelou.

-Não percebe que já estou morto?

-Não percebe que não me importo? Quero saber se autoriza doar seus órgãos ou não.

A ingenuidade, ainda que tão bela em alguns, nunca me cativou.

Afirmo então, a quem possa interessar, que deixo disponível então meu coração. Mas só a metade que restou, com mais crateras que a própria lua, com mais golpes que o mais disciplinado dos espadachins. Deixo disponível esse coração em farrapos, esse trapo de órgão, que não me veste mais, ex cabível em meu peito, está morto, não queiram, não queiram, pois, este coração tão deteriorado...

-Senhor... eu não tenho o dia todo.

Dando prosseguimento ofereço também meus rins, que nada mais filtram, servem apenas para tornar meu embriagar tão doloroso. Ah e o fígado, aquele lamento de fígado. Gordo, feio, inflamado, sem forças para processar.

-Senhor... eu peço por gentileza...

O estomago! Tudo que disse, que ouvi, bebi e comi, tudo que sorri, ah o estomago já era, fagocitou a si mesmo. Não, eu não tenho mais estomago para isso, literalmente.

A mulher zangou-se comigo, vi seus dedos digitarem avulsamente sobre o teclado.

-E os pés – agitei-me, eu ainda não tinha minha resposta, logo não podia ela dá-la por mim.

-Ah, o que há com seus pés?!

-Eu muito caminhei ao lado dela, meus pés sabem tudo pelo que passei.

-Seus pés não são órgãos senhor! Não trisque em mim outra vez e peço que se retire!

-Mas não vê que estou triste?

-Apenas saia senhor, seu documento já está pronto.

-Você doaria seu coração?

-O que?

-Doaria?

-Bom... sim.

-Então por que não consegue ser solidária?

-Senhor, isso é metafórico, o senhor está confundindo as coisas.

-Pois não passo de um cadáver.

As órbitas da mulher fumegavam de impaciência.

-Devo cancelar então seu registro geral? Se é um morto, não pode mais agir como um de nós, vivos.

-Diz isso porque está interessada em meus órgãos.

-O que?... eu não...

-Eu... Deus, sinto muito. Terminei um relacionamento de catorze anos há catorze dias, estou tornando conotativa minha vida, não estou em condições de interagir no momento. Eu... sou jornalista, assino o editorial da folha, desculpe-me o transtorno. Eu... não quis... enfim, tenha um bom dia.

Ela nada disse até que eu alcançasse a porta, mas pareceu se comover com tais palavras. Não era burra, ainda que fosse instrumento significativo do sistema.

Ah, agora estou pensando no sistema... a longa conversa..., mas é ainda mais fácil do que pensar nela... no sorriso dela... de como os dentes da frente são levemente tortos...

Agora o sistema já é novamente assunto do passado. Somente ela ocupa meus pensamentos outra vez, como uma doença. E as metáforas continuam e continuam... metáforas afinal não servem para romantizar a vida, nem para torna-la mais fácil, quem dirá mais compreendida. A função das metáforas é o tormento da alma do sensível, dos românticos, dos bêbados, dos nostálgicos, dos poetas, das putas. A metáfora é a maior droga que nossa escassez de inteligência já inventou para explicar o inexplicável.

Carrego meu novo documento na carteira aberta a minha frente e vejo quando as lágrimas tocam o couro bronzeado. Em seguida vem a chuva que não se preocupa em interromper a clareza dos preguiçosos raios de Sol, molhando-me a camisa e o asfalto e os pedestres, até que o dia todo se torne úmido temperado. Sei que devo me abrigar para evitar um futuro resfriado, poupar-me do constrangimento de andar molhado ao léu, como se saísse sem o carro que precisei vender para quitar o apartamento... sei disso.

Caia a ficha então que agora moro realmente só e que nosso cachorro ficou com ela e ela sempre cuidou dele muito melhor de que eu, deu banho e pôs sua comida nas horas certas..., porém eu é quem escolhi seu nome. Adônis. Ela riu quando eu disse. Isso tudo é tão claro em minha mente agora, como se eu tivesse visto seu sorriso e sentido seu hálito de erva doce, hoje cedo pela manhã.

Quebrei. Quebradiço. Quebrável. É, eu estou mesmo quebrado, e como se o destino pressentisse, vejo meu médico, atravessando a pista, caminhando confiante em minha direção.

Ele me cumprimenta com um aceno e diz boa tarde.

- Ah doutor, preciso de um coração novo, esse está apaixonado. 

O doutor dá risada, certo de que meu estado emocional não é dos melhores.

-Então quer um coração que não ame?

Pensei um pouco a respeito e não deveria, porque era justamente esse pensar que desejava o doutor que eu tivesse, pois ele foi embora satisfeito, sem tempo para os desabafos amorosos de um cadáver.

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