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Benjamin

Um dia me disseram que eu não estava em tempos de velório. Dito isso, o mundo ainda nem havia completado sua sétima volta aquela semana e meu melhor amigo morreu em um acidente de carro.

Benjamim (e só Benjamin) era um sujeito que não se sabia dizer se era mais bonito de rosto ou de alma e, diferente de mim, ele costumava ser incrível. Foi por isso que, quando atendi o telefone aquela manhã, antes de sentir ódio ou tristeza, antes de gritar aos céus que a vida não fazia sentido ou mesmo de lembrar em ser um amigo confiável, eu fiquei surpreso. Era ele quem dirigia. Talvez outro alguém não decifrasse a mórbida mensagem daquela voz de mulher chorando exasperada, desorientada, inconformada e ininteligível do outro lado da linha, mas eu entendi. Nas onze e trinta da manhã de onze de maio de um dia do meu passado eu pensei o mais terrível dos pensamentos. Meu amigo Ben falhou uma única vez e eu não estava lá para ver.

 

A INFÂNCIA

Sou criança. Estou correndo numa campina verde e infinita. E eu corro tanto que minhas pernas doem. No entanto, a cada passo a campina parece mais incrível e estou disposto a tocar com os solados de meu Kongo seminovo cada milímetro de eternidade a minha frente. Sim, eu sabia que demoraria a vida toda, mas estava viciado na campina. Tinha vento. Tinha céu. Tinha capim. E tinha eu correndo, de uma forma fofa e esquisita, pois jamais fui um bom corredor. Porém, passados cinco minutos tudo já estava para trás. O vento, o céu, o capim. Pertenciam ao passado agora. O presente era eu e a campina e, se Deus quisesse, o futuro também.

Então a dor aumenta. Minhas pernas pesam agora uma tonelada cada. O horizonte se abre, ainda mais convidativo do que antes e minha resistência na corrida chega a seu fim. “Não, eu preciso chegar até o final”, lembro-me que dizia isso a mim mesmo aquele dia. Mas era de uma câimbra tão intensa que eu já não conseguia correr nem como um corredor não profissional, nem como eu mesmo. Eu só conseguia me atirar ansioso para frente. Rebolar e até me arrastar frustrado para frente, sempre para frente. Quando o terreno abaixo de mim se expandiu e a campina passou a ser como o espaço sideral em matéria de infinito, eu me tornei um ponto, que já não podia mais correr. Tornei-me um ponto parado, praticamente um incomodo.

Então sinto medo da campina. Ali, se o vento, o céu e o capim haviam ficado para trás, então também não havia som, não havia nada. Fico aterrorizado com a solidão daquele lugar e tento fugir. “Vamos lá, você pode voltar para o começo”, lembro-me que naquela época eu acreditava nisso. “Vamos lá”. Então choro e para falar a verdade nunca saí de lá. Quando a professora me acordou em meu primeiro dia de aula no fundamental, eu estava lagrimando e com as coxas roxas sobre o chão limpo da sala. Benjamin dormia “como um anjo”, assim comentou ela, sobre as minhas pernas e eu não sabia dizer, de que maneira, um menininho magro de seis anos era capaz de pesar tanto.

Anos mais tarde descobri que, assim como tudo, o peso é relativo e que, algo de pouca massa pode pesar imensamente devido a sua intensidade. Benjamin me disse que na verdade é a sua força que vai ficando menor, o objeto permanece com a mesma massa e você é incapaz de suportar a pressão gradiente da gravidade, então você não é mais capaz de aguentar e o objeto derruba você. “Por isso precisamos resolver logo, ninguém suporta nada por muito tempo”. Nós só tínhamos dez anos quando levamos essa conversa, talvez por esse motivo eu não entendi uma só palavra do que ele realmente queria me dizer. Com dez anos eu pensei que falávamos sobre física – matéria que eu almejava dominar - porque Benjamin era bom e eu parecia ser também. Mas nunca foi física para Ben, ele metaforizava os números. Não era o garoto brilhante de exatas como se orgulhava em dizer nosso professor Cláudio, era apenas um garoto brilhante. E se, por acaso alguém pensasse que minha admiração por Ben seria inveja, ou mais tarde, como chegaram a supor “amor”, eu me zangaria. Não era nada disso. Eu me orgulhava, Deus fora muito bom comigo, porque, se Benjamin machucou minhas pernas ele também me salvou da campina da vida uma série de vezes. Ele era o que convenientemente chamam de melhor amigo. E eu reconhecia que era ainda mais do que isso, talvez a professora estivesse certa e ele fosse mesmo um anjo da guarda.

-Desculpe – disse-me com a voz embargada de sono – Machuquei você?

Estou um pouco zangado, mas ainda assustado com a imensidão da campina.

-Você quase me matou sabia? Sonhei que precisava correr, mas como minhas pernas doíam eu fiquei sozinho no meio do nada.

Ele passou o polegar sobre o olho esquerdo, como que para acordar melhor.

-E você tem medo de ficar sozinho? – quis saber.

Parei. Criança fala de muita filosofia, gente grande de espírito não percebe.

-Tenho, você não? Eu não conheço ninguém aqui ainda.

E o melhor: elas nunca mentem.

-Ah... – ele murmurou – Eu também. Por isso vim dormir aqui, não vi você aí.

Quando se é criança também se faz amizade rápido. Várias delas para a vida toda.

-Mas a mamãe me disse que eu tenho que fazer amigos hoje – constatei.

E Benjamin disse para que eu fosse amigo dele e no recreio, brincamos com as outras crianças e eu já não me lembrava da campina.

 

O GRITO

Na quinta série as turmas minha e de Ben foram para uma excursão no zoológico central.

-Qual seu animal preferido Amanda? – Perguntei para a garota que eu gostava.

Ela remexeu a ponta fina do nariz e ficou em silêncio.

Senti-me mal. Amanda era como um farol a noite em uma praia deserta: lindo, misterioso e silencioso. O que significava que eu estava sendo ignorado por uma linda menina. Muitos anos mais tarde soube pelas revistas de fofoca que ela também se tornara uma linda mulher, mas eu já não estava perto o suficiente para dizer.

-Ben...

Meu peito esquentou. Não me importava que todas as garotas preferissem Benjamin a mim, só me incomodava Amanda. Mas, de fato, não era Ben o culpado por Amanda também o preferir e eu jamais me zangaria com ele por algo assim. É só que a puberdade nos leva a experimentar desejos e sensações estranhas...

-BEN!

E ela gritou. Agudo a ponto de eternizar aquele momento em minha lembrança. Em um brusco movimento de inexperiência em reações negativas femininas, virei-me a tempo de registrar na memória - ou não - uma das cenas de pânico mais terríveis que já presenciei. Era Ben e uma Cascavel atracados em um abraço da morte. Ele calmo e ela anunciando tempestade, ambos feito oceano. E meu grito não escapou do peito àquela hora. Eu o sufoquei como um louco que decide comer sempre sozinho, ignorando o perigo.

E a cobra apertou as costelas de Ben um pouco mais.

“Atenção”, dizem as caixas de som para que o mundo ouça, “Dirijam-se todos para a saída, saiam todos da área dos répteis...” A voz masculina que eu não conhecia continuou anunciando que uma naja indiana havia escapado e que por essa razão o parque deveria ser desocupado o mais breve possível, mas eu parei de ouvir. Meu universo ficou ausente de qualquer onda sonora enquanto eu jazia inerte a ver a lenta morte do meu querido amigo.

E nada era feito. Benjamin estava vermelho, roxo, rosa e violeta lançando seu olhar azul turquesa em minha direção. E ele não parecia sentir medo algum. Foi quando Amanda gritou

-LUCAS!

Os olhos de Benjamin se encheram de terror e o mundo enegreceu.

 

A FACULDADE

Quando se tem dezenove anos e é sustentado pelos pais a distância, a vida é um eterno fim de semana. E eu adorava a faculdade mais do que tudo. Na melhor época de minha vida descobri que sexta à noite jamais chove nas cidades universitárias e tu sentes que o mundo é teu, quando tu mesmo não pertences a nada e a ninguém.

Há milhões de quilômetros em qualquer direção a Lua me encarava e eu sustentava seu olhar como se fosse mesmo ir a enfrentar um dragão. E tanta era confiança que eu esbanjava pelas ruas e ruelas que, quando cheguei aos sessenta, ri e chorei da imensidão de minha estupides e agradeci aos pais do céu e da Terra por um dia ter sido tão feliz.

 

A MANCHETE

Acordei em uma cama de hospital. Minha mãe, o professor de biologia da quinta série e Ben me olhavam como se eu fosse morrer a qualquer minuto.

-Ah Lucas... – mamãe começou e parecia querer chorar, não sei se de feliz ou triste.

Paro. Tento ferozmente me lembrar do que aconteceu, mas é tudo desfragmentado em minha memória. Não sei dizer o que fiz ontem, ou antes disso, nem o porquê de sentir tanta dor. Cada ossinho de meu corpo era um estalo nervoso, em lugares que eu nem sabia que existiam.

-Arrasou campeão, você está em todos os jornais – e ligou a televisão para que eu pudesse assistir as manchetes.

Benjamin brincava, mas estava preocupado, eu o conhecia. Ele retirava os óculos de grau que começara a usar desde os oito e os limpava a cada período de três minutos. Dessa maneira, sua ansiedade apenas existia, de forma pouco perceptível.

-Mas, antes disso devia saber que estamos todos torcendo por você Lucas – disse o velho Roger, que era especialista em taxonomia animal e entendia mais deles do que de pessoas.

Ele puxou a cortina azul marinho para a direita e eu pude ver, andares abaixo, em frente ao hospital, duas turmas do ginásio gritando com cartazes de “Força Lucas”, “Estamos com você”. Amanda liderava todos e em uma cartolina rosa escrevera com sua meiga caligrafia “Eu também gosto de você, fica logo bem”.

Aquilo tudo me deixou zonzo e uma descarga de adrenalina me pegou de surpresa, fazendo-me quase vomitar as lembranças perdidas.

Ben retirava pela quarta vez seus óculos e os limpava na beirada da camiseta de farda. Quando os colocou novamente e seu olhar encontrou o meu um relâmpago de receio se ascendeu em mim, como o farol que eu dizia ser Amanda. E voltei de imediato minha atenção para o televisor.

“O governo já se manifestou e o Zoológico Central será multado pelo ocorrido. A família do garoto Lucas de onze anos também será indenizada. Na manifestação feita pelos alunos da mesma escola o pedido era por mais segurança nos ambientes de lazer e entretenimento”. A repórter de cabelo loiro avermelhado explicava a todos calmamente uma parte de minha história que eu mesmo não recordava.

-Você teve muita sorte Lucas – disse Benjamin com a mão direita sobre meu ombro esquerdo – dessa vez eu fiquei preocupado.

E até então, eu nunca havia sentido medo de Ben, mas já estava cansado demais para questionar.

“Eles dizem que a amnésia vai passar em uma semana”, ouvi minha mãe cochichar baixinho com Roger e, com o coração batendo forte no peito, decidi dormir.

-Eu estou bem – disse-lhes apenas.

 

O LIVRO

Aos dezesseis decido escrever um livro. Isso acontece quando:

  1. Percebo que sou melhor com as letras do que com os números.

  2. Um ditado popular me chama atenção.

Capítulo Primeiro

Lucas (e apenas Lucas) acreditava que biografias eram para velhos que possuíam boas histórias. E Benjamin discordava dele. Para o Incrível Ben uma boa biografia devia ser escrita. Então, quando Lucas sugeriu que os dois inventassem uma, seu melhor amigo respondeu “invente a sua”. E jamais Lucas entendeu o que ele quis dizer com aquilo, pois a frase era ambígua.

 

 

O TROTE

Em maio dos meus dezesseis anos percebi que ainda não era maduro o suficiente para escrever um bom livro, o que nunca me impediu de continuar a tentar.

Amanda, ao contrário do que dizia o cartaz não foi minha primeira namorada, e sim Gizele. No entanto, Amanda foi a segunda e naquela tarde de minha adorável adolescência liguei para ela na esperança de que seus pais não estivessem em casa como da última vez.

E não estavam.

Em um impulso que despertou uma coceira formidável em minha virilha peguei minha velha bicicleta jogada próxima ao grande portão vermelho da entrada de casa e pedalei confiante quatro quadras a cima, para a residência magnífica da adorável Amanda. Nesse período de nossas vidas a popularidade dela como “garota propaganda daquela marca famosa de sapatilhas” já estava entrando em seu auge. A linda garota possuía belos pés, como eu brilhantemente descobri sozinho, mas além disso era também demasiado próxima dos donos da tal empresa de calçados. O porquê, dizia-me ela, eram as boas relações familiares que possuía e que a oportunidade surgiu em festas de sobrenomes. Eu não entendia nada daquilo muito bem. E nem queria. Eu só queria saber de Amanda, principalmente dela sem sapatilhas.

Paro então em frente a um casarão com uma grade amarelada longilínea na entrada. O quarto de minha garota é no segundo andar, mas eu sei que ela não está lá, pois a mesma me espera calmamente dentro de um vestido branco, sentada sobre um balanço azul carente de pequenas crianças.

“Você demorou” ela diz. E eu sorrio, meio que ansioso, meio que feliz. É tão incrível, nessa época essa simples frase era tudo que me fazia sentido.

Foi por isso que, quando percebi que a frase de Amanda não era direcionada a mim e sim a um sujeito que eu nunca tinha visto até então, minha vida se esvaziou feito um balão beijando uma agulha. Do ângulo em que estava, eu a podia ver e ouvir, diferente dela. O homem encapuzado então se aproximou, ele trazia uma caixa, o slogan da tal empresa de calçados visível na beirada.

-Trouxe de presente – ele disse. E detestei fortemente sua entonação.

Mas eu não podia dizer o mesmo de Amanda que, por sua vez, sorriu. O sorriso que parecia iluminar o mundo todo, deixou-me naquele momento congelado. Ali, imóvel, eu podia ver as folhas rosas caindo sobre o balanço azul. E o vento ondulava o vestido quase incolor de minha garota da mesma forma com que as ondas ondulam a mente de quem ama. E teria sido uma cena linda de cinema, uma obra do museu de Louvre ou um retrato famoso de fotógrafo nenhum se a caixa daquele sujeito suspeito não tivesse sido aberta, com o uníssimo intuito de pôr fim ao meu sagrado universo de paixão nomeado Amanda.

Como Pandora, saíram dali tudo de ruim que há no universo, mas, diferente de Pandora, não restou para mim a esperança. Era apenas dinheiro, notas e mais notas, sem melodia alguma. Pura e fisicamente uma caixa com algumas centenas ou milhares.

Ela sorriu novamente. E eu queria poder decifrar aquele gesto. Tão enigmática era Amanda para mim agora, o que soaria sensual em outro contexto.

-Sendo assim eu desculpo sua demora – ela disse simpática para o homem de capuz.

Ele era muito mais alto que minha doce garota e muito mais largo. O único fato de que eu não sabia era o de ele ser muito mais velho também, pelo menos vinte anos.

Quando o suspeito dono da Pandora de dinheiro retirou o seu capuz revelando a verdadeira identidade eu mordi a gengiva inferior esquerda. E o gosto de meu próprio sangue fez o caminho inverso para dentro de meu corpo enquanto Amanda se aproximava ainda mais de Levis Boston, dono das Sapatilhas Levis. Ele ali, em pessoa, sem tantos efeitos ruins de televisão estadual, parecia tão decadente que eu poderia até fazer um pedido.

Eu não entendia Amanda. Por que Levis estaria a dar dinheiro para a garota que escreveu que gostava de mim em uma cartolina rosa e me convidou para assistir à adaptação de seu livro favorito no cinema, e, como se não bastasse, ainda me falou que não poderia estar mais feliz quando eu a beijei ao final da sessão? Por que? Simplesmente não havia nexo.

-Primeiro faça a ligação minha querida, lembre-se que é somente você quem é capaz.

A voz asquerosa daquele sujeito velho demais para ela chegou aos meus ouvidos como unhas arranhando a lousa. Ainda assim Amanda sacou o telefone e ligou.

Ela aguardou.

Durante a espera as folhas pareceram cair com mais intensidade e o universo estava agora tomado de um rosa intenso. Tudo era rosa: o chão, o céu, Amanda... E se ia alternando do claro ao escuro, entre tons de surpresa e infelicidade. E achou de parar em um choque de decepção para em seguida perder gradualmente toda a cor. Assim, sem animo algum para decifrar cor alguma percebi um tanto atrasado que o aparelho no bolso de meu jeans estava a vibrar. Talvez estivesse com som, mas eu já não ouvia. Talvez tivesse cor, mas já não queria ver. Meu ponto de concentração era Amanda em seu vestido ondulante fazendo uma ligação misteriosa para um misterioso alguém que não atendia.

Ah Amanda, justo agora que eu estava amando...

E sem ver, ouvir ou mesmo desviar meu olhar para longe de minha garota saquei automático o telefone do bolso.

-Alô? – eu disse.

-Oi Lucas, é o Ben, tem algo que você precisa saber sobre a Amanda.

 

Capítulo Oitavo

Amanheciam-se todos ao mesmo tempo na cidade universitária.

O garoto Lucas pegava o ônibus das sete todas as manhãs com o belíssimo intuito, quase bélico, de passar a ser conhecido como o homem Lucas. Ele esperava calmamente em uma parada que não possuía banco, em frente à igreja e nos dias em que o céu ansiava chuva ele também molhava os solados de seu tênis esportivo branco seminovo.

Dentro do ônibus, sobre o quarto banco a direita, antes de se chegar ao cobrador ele via: eram sempre os mesmos rostos, os mesmos corpos.

Uma mulher loira de tinta, lá pelos seus quarenta, costumava se maquiar sempre que o motorista estacionava ao terceiro semáforo e descia para comprar o delicioso pastel de uma famosa padaria portuguesa. Ela puxava a pelezinha do olho direito com o indicador esquerdo e contornava as pálpebras inferiores com um finíssimo lápis preto. E fazia isso todos os santos dias e em todos os dias santos, talvez por não ter tempo de o realizar em casa.

“Que deselegante” sussurrava Lucas.

Então ele sacava um instigante aparelho eletrônico do bolso, selecionava uma boa música e a ouvia só para si, em seus fones de ouvido azuis que ganhara de uma bela garota em maio. Namorava a letra e a melodia da canção e em um impulso de sensibilidade regressava a analisar o olhar e a alma daquelas caras de sempre.

O cobrador era uma figura fantástica. O cobrador nunca chorou, nunca esbravejou, jamais desceu para provar do bom pastel e muito menos pronunciou o que quer que fosse de imoral. O cobrador era sorridente, amável e muito bom no que fazia. Ele cumprimentava a todos e nas moedas dispunha o câmbio exato: nem mais nem menos.  Seus cabelos tinham a cor de jornal impresso e seu olhar indicava conteúdo. De fato, em teoria ele realmente deveria conhecer qualquer notícia que ia e vinha de primeira mão. E olhando para ele, Lucas se perguntou como seria passar a maior parte de seus dias sobre aquela cadeira, a temperatura elevada, contando um dinheiro que não era seu. Permaneceria ele a ter a mesma sensibilidade? Lucas não compreendia, mas o bom cobrador parecia continuar a ter.

-Já? – quis saber sorridente o tal homem - Para onde vai agora?

Lucas retribuiu um sorriso amistoso.

-Estudar, sempre.

E assim que avançou a catraca viu de relance outras pessoas conhecidas ao redor: A menininha que só trajava rosa, o feirante que um dia trabalhou em circos, a bonita atendente de marketing, os estudantes de jornalismo... E o sujeito misterioso. Lucas poderia afirmar certamente que o único naquele espaço amostral que, de fato, ganhava sua atenção, era um enigma. Era ele um homem que jamais se sentava nas poltronas públicas dos passageiros e estava diariamente a usar uma camiseta preta colada, além de uma mochila da mesma cor que seria mais correto nomear “mala”. Com boas feições, ele permanecia em pé por todo o trajeto até o centro, desviando a atenção de todas as mulheres que pretendiam descer ou subir dali. No meio da larga passagem, algumas moças mais ousadas atravessavam o caminho de tal maneira que seus corpos se esbarrassem no dele, mas isso nunca o incomodou.

-Nem deveria... – Lucas diz, tão baixo a ponto de não ter dito.

E sério e frio feito pedra de gelo.

Se eram sempre os mesmos rostos para Lucas, quanto ao sujeito, era também a mesma expressão. Nem mesmo um sorriso sequer. E se pensa, dessa forma, que com toda certeza muito mais moças se esbarrariam propositalmente nele se este então suspendesse o canto dos lábios em um sinal de paz.

“Talvez seja por isso” pensou Lucas “Talvez ele tenha alguém que não ficaria contente se mais moças se esbarrassem”.

O semáforo fechou em frente a farmácia central, era a hora do homem misterioso descer. Ele o fez e pela janela lateral Lucas o observou ir embora, parecendo decidido a continuar ser mais um segredo do mundo.

“No entanto, não iria querer essa pessoa o ver sorrir também? ”, indagou-se o garoto. E percebeu, não como as mulheres, mas como o homem que almejava ser que, aquele sujeito misterioso era, assim como a sensibilidade que se adquire de passagem no ônibus, algo mesmo muito bonito.

 

Capítulo Nono

Aquela manhã era especial, sequência de uma noite de raios e tempestades e, estar os dois bons amigos ali a esperar juntos o transporte até a faculdade, era uma consequência da vida.

Benjamin e Lucas alternavam, entre uma poça de lama e outra, o caminho frio até a parada da igreja. Sem banco, posicionaram-se os dois, sozinhos na imensidão de uma larga avenida esperando por um veículo que talvez não viesse.

-Como assim talvez não venha? – quis saber Lucas - Não seja ridículo, é claro que ele vem, vem todo dia.

E fez um gesto vago como que para debochar da desconfiança de Benjamin.

-Você também ficava com Amanda todos os dias, nem por isso fica mais – respondeu o melhor amigo, os olhos mais azuis e gélidos que o céu, o cabelo tão preto feito petróleo.

E Lucas, com o olhar e os pelos tingidos de castanho, não era assim excepcional, mas encarou o amigo tão seriamente como as nuvens faziam entre si na noite anterior.

-Você não disse isso... – começou, rindo um tanto incrédulo, uma frase com potencial para desencadear uma briga.

E Benjamin, que até então havia parado para examinar uma poeira imaginária em alguma de suas unhas suspendeu a cabeça. Alguns centímetros a mais o faziam encarar Lucas de cima.

-Eu disse – reafirmou.

Aquele Benjamin... Lucas não o conhecia. Ele entendia que o amigo poderia ser teimoso e orgulhoso em vários momentos, mas jamais imbecil. Ben era um ser incrível demais para bancar o idiota com a pessoa que mais o admirava no planeta.

-Eu só acho que já está na hora de você esquecê-la...

E Lucas mordeu o lábio inferior. Para um bom entendedor tal gesto bastaria, mas ainda assim não quis dar tempo e explodiu em cima do amigo. O simples nome “Amanda” era capaz de o fazer agir dessa maneira.

-Jamais a esquecerei se você me lembrar dela logo pela manhã! Nem bem o Sol nasce e você me fala esse nome, o que foi que deu em você?

Lucas não poupou a voz, ele gritou. Ele gritou com Ben.

E Benjamin, impassível, nem mesmo se mexeu, se duvidar nem esquentou o sangue.

Pausa.

-Desculpe, já faz um tempo, só queria ver se já havia passado... parece-me que não.

Aquilo não suavizou o cenário sentimental e Lucas não o desculpou.

-Não Ben, eu não sou isso. Não sou um objeto de pesquisa seu. Não sou plano para você testar ou um livro para estudar. Eu sou uma pessoa que teve uma namorada ruim, será que dá para me deixar em paz com isso? Não é a primeira vez, nem a segunda, foi mal cara, mas eu não sou tão insensível quanto você, será que dá para me deixar tranquilo com essa merda?

Se Deus olha por todos em todos os lugares, então em frente a igreja seu foco seria naturalmente melhor, mas Lucas não se importava.

Ben suspirou com impaciência. E Lucas detestava isso nele, não era comum. Parecia um vampiro que estacionou no tempo, sabia mais do que devia em dezessete anos de existência, soava surreal.

-Não vamos falar de paz porque isso levaria a uma discussão...

-Já estamos em uma discussão.

-Não, não estamos.

-Estamos sim.

-Agora estamos, então já que estamos é minha vez. Eu vi como olhou para a Mercedes preta que acabou de passar naquela esquina ali – e Ben apontou para um cruzamento que ia rumo ao horizonte turquesa claro – Nós dois sabemos de quem é aquele carrão e quer saber? Eu já cansei. Cansei desse seu ar deprimente sempre que algo te lembra esse assunto. Já foram seis meses Lucas. SEIS MESES. Até quando vai continuar assim? Eu não quero saber do meu melhor amigo infeliz por causa de uma garota que nunca mereceu o que você sente por ela...

Benjamin falava sem se mexer muito, mas seu olhar emanava toda a magnitude que possuía, outro alguém poderia simplesmente ficar imóvel e se deixar ganhar a vaga discussão, mas, por obra do destino, esse alguém não era Lucas.

-Cala essa boca! Como você sabe que não mereceu? Diga-me Ben, como você sabe???

O rosto vermelho do rapaz demonstrava uma raiva que ele ansiava conter. Benjamin ajustou os óculos sobre o nariz, seu primeiro sinal de descontrole.

-Ela nunca te amou.

E aquilo foi uma flecha. Uma aljava repleta de flechas, que marcaram um estopim no coração de Lucas. Um coração amargurado e humano que sofria por amor. E ah Deus, como é agonizante a dor desses corações. Por que o mundo não se solidariza dos envoltos por essa terrível e amarga ilusão? E são eles capazes de tudo: Os calmos choram todos os lagos do mundo e os de sangue mais quente fervem oceanos. Eles se esquecem de comer e de beber ou o fazem descontroladamente. Eles tentam se matar nos mínimos detalhes e morrem todos os dias até que decidam de fato renascer.

Em Lucas o impulso de uma flechada de realidade, frente a uma armadura de decepção foi tão intenso que este se atirou, pela segunda vez na vida, sobre o melhor amigo. E rolaram os dois em uma luta de hormônios ruins sobre algumas poças de lama.

Aos que conheciam Benjamin, apostariam que aquele brilhante rapaz não levantaria um dedo se quer para machucar outro alguém. Ele o fazia com as palavras. Se fosse para lutar, este se defenderia e se livraria do agressor. Então se levantaria, limparia a roupa suja e ajeitaria os óculos pacificamente, soltaria uma frase de efeito e se distanciaria. Ben era quase como um japonês.

Na verdade, isso não aconteceu e, quando caiu no chão frente a primeira investida de Lucas, Ben parou meio segundo para tomar fôlego e devolveu o soco no rosto claro do amigo com a mesma intensidade. Seus óculos haviam caído, mas ele os deixou lá, onde estavam, mergulhados em uma poça de contaminado líquido marrom.

E rolaram os dois, em meio a uma sequência de investidas. Lucas avançava, Ben se defendia. Lucas pensou que suas aulas de Muay Thai lhe dariam alguma vantagem, mas o amigo parecia mesmo ser bom em tudo. Os dois não notavam o quanto a cena era ridícula vista do alto: Dois jovens rapazes se machucando em meio a lama, como porcos no chiqueiro. Na realidade, nada no mundo eles pareciam notar. Nem o ônibus azul da faculdade quando este passou pela parada ignorando o alvoroço dos dois.

-Para de ser idiota Benjamin! – Lucas resmungava com os braços numa chave em torno do pescoço de Ben.

-Só se você parar primeiro, ela vendia o próprio corpo Lucas e fazia coisas ruins, será que não vê?

Ben se livrou do golpe e virou o jogo completamente, imobilizando o amigo, segurando os braços deste atrás da costa.

-Insensível de merda.

Lucas não conseguia se mexer, o rosto encostando na pista suja da parada.

-Seu tolo! – revidou Ben.

E Lucas se libertou, dando prosseguimento a briga dos dois.

O ônibus azul era nomeado Aeroporto Velho e foi embora. Não se apiedou da situação daqueles dois universitários brigões. Não perguntou se Lucas sofria por amor ou se Ben havia escolhido as piores palavras para lutar por uma boa causa. Ele não quis saber. Ele automaticamente partiu, sem humanidade alguma, o que era normal, pois não se espera humanidade em ônibus azuis.

E dirigiu passível, sabem-se todos para onde: Para a igreja, depois para a escola média, depois para o centro e para a universidade, em seguida só seu nome era capaz de dizer. Para o velho aeroporto, para um lugar que jamais existiu. Para um cenário fantasmagórico no qual desembarcariam os demais passageiros. No limite de tudo o que é possível, onde o cobrador permaneceria a rir e o universo continuaria a existir. Para um cartão postal azul, um lugar sem nome e sem endereço... para a campina.

Lucas parou, seu olhar mudou quando pensou na campina. E Ben interrompeu seu soco no ar. Encaram-se os dois apenas. Lucas deitado, as roupas tão sujas a ponto de se confundirem com o chão e Ben congelado numa posição que lhe concederia a vitória. Os olhares dos dois não se compreendiam. Quem era Ben? Quem era Lucas? Quem poderia dizer?

Então abaixou o braço lentamente, até cair morto ao lado do corpo e Lucas permaneceu assustado, não com Ben, com ele também, mas com tudo o mais. Assustado por como uma garota doce como Amanda poderia ser tão amarga, em como seu melhor amigo poderia o bater tão bem, em como seria sua vida sem os dois e em outros dilemas a mais que rondeiam a mente fértil dos adolescentes. Lucas começou a chorar e Benjamin abaixou o olhar chateado.

-O que dói mais?

Lucas soluçava, mas apontou para a maçã esquerda do rosto e Ben arfou aliviado e infeliz.

-Ainda bem... – murmurou e puxou o amigo para um abraço.

Algum cineasta talentoso, homem ou mulher, literalmente perdeu aquela cena. Pois, se registrada, certamente faria sucesso nas telas de cinema. Em um abraço enlameado de dois jovens universitários, lia-se tudo: Amor, ódio, medo, paz. Lia-se tudo o mais que existia no planeta, naquele simples abraço, de uma magnitude tremenda e que poderia dizer tanto à tantos.

-Não chore Lucas, por favor, eu estou aqui para que você nunca mais precise chorar.

Bem dizia calmamente e soava protetor. Era mesmo como se ele realmente pudesse poupar o amigo de todo o mal que sondasse a Terra, de todos eles, menos de um. Menos de Amanda.

-Eu sabia que não deveria... – sussurrou Ben, mais baixo que a maré.

-O que você não deveria? – perguntou Lucas.

E o silêncio, de repente, ficou alto demais. Benjamin não respondeu.

-A Amanda é minha campina – disse Lucas para o amigo.

Ben concordou com a cabeça.

-Desculpe, eu não deveria... deixar nunca você se aproximar da campina.

-Eu quis – Lucas o cortou, mas o rapaz negava com a cabeça.

-Não, eu que deixei...

E mais uma vez Lucas não entendeu. E isso tinha um belo histórico de vezes, ele jamais compreendia completamente o que o amigo queria dizer em suas frases.

-...

-...

O silêncio ficou ensurdecedor ao mesmo tempo em que apurou os sentidos dos dois.

-Tá ouvindo isso? – perguntou Ben.

-Nada...

-...

-Tá vendo isso?

-O que?

-O mundo mudou.

-Verdade, está muito mais frio.

-As cores estão diferente também.

-O tempo está mais devagar.

-Você ainda está com raiva Ben?

-Não sei, você ainda está com medo?

-Nem um pouco, nossa... o tempo está mesmo muito devagar...

E dizia isso em uma lentidão tremenda. Tudo. As nuvens, as folhas nas copas das árvores, movia-se a passos lentos, rastejantes, semi-inexistentes.

Foi quando o Sol achou de se aproximar, derretendo aquela câmera lenta, mudando o roteiro e instigando o magma do centro da Terra a subir, postando-se um rei sem dó, sem mi ou fá, matando de calor todos os músicos em um raio de milhões de quilômetros. O Sol estava impiedoso e sob sua ordem o asfalto tremia, transformava-se em indesejada lava preta. E sem acreditar, ausente de qualquer explicação prévia, Lucas e Ben ainda estavam vivos. Eles assistiam a avenida se tornar um rio, as ondas e a corrente, tudo se dirigindo rumo ao infinito. A cidade universitária migrava para o horizonte turquesa.

Talvez porque Deus exista ou porque coincidências existam, a parada não se desfez. Em frente à igreja a dor de uma temperatura estelar era suportável. A lama nos corpos dos rapazes, comportou-se como um escudo. Ela gelava a carne e os ossos dos dois e matinha seus órgãos intactos. E, dessa forma, respiravam. Vivos, observando a pintura expressionista mais terrível de todas. A parada, sem banco, ainda era parada. A igreja agora mais convidativa que o mundo todo e Lucas, lembrou-se, que nos filmes apocalípticos que assistia quando entrou na puberdade, era esse um final previsível.

-Ben... – ele começou assustado.

E pensou em Amanda. Estaria morta sua garota agora? E além de não ser mais sua já não era mais do cosmo, e este último também não era mais seu. Pensou na mãe e no pai, no irmão mais novo e seu coração se adoentou com mais doloridas flechas.

-Ben!!!

Mas Ben não estava lá. Onde estaria Ben?

O coração de Lucas não se sentia protegido com a lama fria. Estava quente demais, aterrorizado entre batidas mais rápidas e efervescentes que o próprio Sol.

-BEN SEU IDIOTA, VENHA ME SALVAR DA CAMPINA!

E parou.

O asfalto que agora era rio congelou, imóvel. Tudo permaneceu onde estava, nem o vento ousou continuar a soprar. O fogo, estático, as estátuas de santos no alto, idem. Nem Lucas era capaz de se mexer.

-Eu estou aqui seu lerdo – sussurrou Ben, mais sarcástico do que gostaria, atrás dele. E suspirou entediado.

-Será que não vê? Deve ser uma ilusão e mesmo se não for, não sinta medo – aconselhou.

Lucas permaneceu incrédulo, mas o terror em seu peito amenizou.

-Como pede para que eu não sinta pânico? Ben, você é mesmo humano? Não parece.

-Você diz isso de mim, mas acabou de congelar o universo.

E em silêncio observaram os dois: um todo que não se mexia. Nem o oxigênio entrava ou saia de seus pulmões. Nem a vida havia de ser ali.

E uma folhinha rosa, sabe-se lá de onde que veio, caiu sobre o nariz claro e afilado de Lucas. Um presságio ruim ou apenas um convite, ele não sabia dizer, mas foi a deixa perfeita para que o Sol abdicasse da Terra por ora e retornasse mais para o centro, a vista de tudo e de todos, bem longe dali.

-Estou tonto... – Lucas começou a dizer e caiu, sobre os braços de um amigo Benjamin que o aparou.

-Também me sinto fraco, mas por favor, não durma agora – murmurou Ben anemicamente.

E a cena estava ainda mais linda, deitados sobre a lama, sem saber se deveriam a chamar assim. No fim do mundo, os dois amigos se protegiam de maneira sobrenatural.

-Essa é a nossa campina me parece... – tentou iniciar um diálogo o jovem Ben. E riu infeliz da própria metáfora.

-Tudo bem... – disse Lucas – Você é meu anjo né?

Os lábios rachados de Ben se esticaram ainda mais, completamente indecifráveis.

-Eu queria mesmo ser...

Silêncio.

-Então por que você não chora? – quis saber Lucas.

-Você sabe, eu sou o mais velho, se eu chorar você entra em prantos também.

E riram, provavelmente desidratados, desorientados, inconformados, desinformados, desolados, unidos, angustiados, amando o resquício de vida que o Sol cedeu para os dois.

-Olha só... – apontou Lucas para o horizonte – É o nosso ônibus.

-Ah meu Deus - disse Benjamin - eu não consigo ver.

-Onde estão seus óculos? – Preocupou-se Lucas.

Riram-se os dois ao lembrar da lamentável luta anterior. Alta e esquizofrenicamente.

-Quem liga? Vamos sair já daqui!

E se levantaram, cambaleando fortemente contra os paralelepípedos, agora resfriados, do chão da parada.

-Lá vem o ônibus, lá vem o ônibus! – repetia louco o Lucas.

-Como ele vem? Não consigo ver!

-Ah Ben, você não vai acreditar ele está andando sobre o magma negro.

-Mas ele está voando?

-Eu não sei, não sei explicar, faça sinal, faça sinal!

E fez. O motorista encostou o veículo na parada e os dois, completamente tingidos de marrom subiram.

-Ah meu Deus! – diziam, sem conter a euforia.

 -Estamos vivos! – afirmou Ben.

-É, estamos sim! Estamos vivos cara – e abraçou o irmão.

Depois pararam e analisaram ao redor. Não eram os mesmos rostos de sempre, haviam uns corpos a mais. O pai, a mãe e o irmão de Lucas, sentavam-se educadamente nas poltronas do fundo, ao lado dos pais de Ben.

-Mãe... MÃE! Pelos céus, vocês estão bem... – e cambaleou para o final do Aeroporto Velho.

A mãe de Lucas torceu o nariz.

-Que sujeira! – reclamou sem reconhecer.

-Mãe? Mãe, sou eu, o Lucas e esse é o Ben – apontou para o boneco de lama ao seu lado.

-Lucas? Meu filho... Ah, eu estava tão preocupada, é você mesmo? Está tão sujo, parece um porquinho...

-Maninho, maninho – bateu palmas sorridente um garoto que aparentava ter seus quatro anos.

-Ben você está imundo – repreendeu a Senhora Beca – Mas que bom... que conseguiu chegar até aqui, preocupei-me...

O filho brilhante tocou as mãos de sua mãe e olhou nos olhos do pai.

Em um tom baixo perguntou – Foram vocês certo? Não esqueceram de ninguém?

-Estão todos aqui – respondeu o Sr. pai de Ben.

E Benjamin olhou ao redor. Amigos e professores, o padeiro português com seus pasteis, vizinhos, familiares, crianças, imigrantes. Haviam tantas pessoas, mas do que a matemática do lugar seria capaz de permitir. E na quarta poltrona, antes de se chegar ao cobrador, sentava tranquilamente uma moça de compridos cabelos claros. Ela usava uma fita vermelha sobre a cabeça que em nada combinava com seu bonito vestido branco ondulante.

Ben franziu o cenho estressado.

-Ela também...

-Ainda não é a hora dela Benjamin, ela já deixou claro que só vai descer muito depois – cortou sua mãe.

E o rapaz abaixou a cabeça em sinal de respeito. Mas o amigo, que até então estava entretido com o amor da própria família, virou-se a tempo de reconhecer que alma ocupava seu precioso lugar aquela manhã. Ele vidrou o olhar na bela jovem por mais alguns instantes, ignorando o quão lotado estava o lugar, e em seguida desviou, demonstrando desinteresse. Benjamin deixou escapar um suspiro de alívio.

-Oh, com licença, está um pouco cheio hoje não?

Se dirigiu a Lucas uma madura mulher com espelho e lápis de olho em mãos. Ela tentou passar a maquiagem corretamente, mas o íngreme asfalto de magma aquela manhã deixou sua face borrada.

Ele riu.

-Bom, mãe, pai, irmão, parece-me que mais para a frente está menos lotado, Ben e eu vamos até lá.

A família correspondeu sua animosidade e fez sinal de que tudo bem. Diz-se o mesmo dos pais do jovem Ben. E foram, com um pouco de dificuldade, avançando entre a maior parte dos cidadãos da cidade universitária até encontrarem o olhar feliz do cobrador.

-Já? – ele perguntou aos rapazes – E para onde vão agora?

Sem pensar ou mesmo entristecer Lucas respondeu – Leve-nos para o infinito.

O cobrador sorriu – Ah, mas estamos todos indo para lá, aqui, seu troco, estudante paga meia sempre, há, há.

E não havia lugar para sentar. Muitas pessoas, conversando, rindo. Os estudantes de jornalismo eufóricos em anotar tudo o que acontecia, a garota de marketing paquerando com um hippie austríaco e a menininha de rosa contando mentiras infantis ao artista aposentado de circo.

-Ah espere, veja, tem um lugar ali – apontou Benjamin, para a primeira poltrona azul próxima a porta dianteira.

E as duas figuras sujas se imprensaram até lá quando... um sujeito diferente, muito sensual em seu jeito de ser e de bonitas feições encostou no assento primeiro. Ele retirou calmamente a mochila preta dos ombros e colocou-a sobre as pernas quando se sentou. E aquele homem jamais sentava, jamais sorria, o homem misterioso de quem Lucas tanto almejava entender. Ele coçou o septo e puxou da mochila uma fotografia aparentemente antiga. Lucas se aproximou, o suficiente para distinguir a imagem de uma bela mulher. Nada disse, só observou, como sempre fazia em todas as manhãs. Ben retirou do bolso da calça de brim um bonito e singular fone de ouvido preto que enlameou assim que o pôs nos ouvidos. Depois, retirou novamente um lado e o deu a Lucas quando este pediu para o fazer.

E a canção era assim:

Vai oceano, que o mundo já não é mais teu

A vastidão do teu amor é que é o mundo

E perdido está quem te perdeu

Vai, vai, azul oceano

Para o centro de tudo, nas profundezas da Terra

Teu início e final são de turquesa, ah oceano, não vai...

 

Não era, com certeza, a música ideal para o momento, mas os dois a ouviam sem mencionar qualquer analogia com o oceano. Pelas venezianas do ônibus, via-se a cidade universitária, já nem tão cidade, nem tão universitária. Alguns trechos permaneciam intactos, outros devastados por algo superior. Ouvia-se remotamente em algumas caixas de sons pregadas nos postes, a voz do locutor, e dizia “A tempestade na noite anterior gerou muitos danos, nunca se viu uma tempestade assim...” E Lucas era incapaz de entender em como confundiam chuva com Sol.

E pararam na farmácia central, era aquela manhã a hora do homem misterioso descer. Lucas queria o segurar, dizer para que não fosse. Para Lucas, o homem misterioso era o oceano. Ele adiantou um passo, mas Benjamin o parou com o imundo braço direito esticado em seu peito e fez ainda sinal de negativa com a cabeça. Então o homem enigmático levantou, recolocou sua mochila e deu dois passos em direção à saída. Antes de descer parou novamente e se virou para Ben. Ele riu sem mostrar os dentes, mas ainda assim amigável e o brilhante rapaz retribuiu o gesto. Em seguida, cumprimentou o motorista e desceu, ali mesmo, no meio do nada. E assim que o motor reacelerou Lucas se atirou ansioso para a janela mais próxima, a fim de o ver partir, quem sabe pela última vez. Mas ele não foi, nessa manhã permaneceu parado, sufocado em um meigo abraço de uma linda mulher vinda do passado. Os dois se abraçavam como que cobrindo os anos em que um deles estivera na guerra e o outro a esperar. Os dois se abraçavam tanto, que depois se beijaram, ali mesmo, no fim do mudo. E Lucas não poderia achar nada mais belo porque era sem dúvida a paisagem mais bonita que aquela janela já registrara.

E a sensibilidade era tanta, que o homem misterioso até chorou o fim de seu segredo.

 

O FINAL

Depois que a empresa de quem eu era sócio faliu, meu livro “Benjamin” deixou-me aliviado em relação as dívidas. Estou sentado no jardim, sobre a poltrona floral que minha adorável filha Júlia me deu. Ela, que é meu mundo, assim como minha esposa Sara e a família que construí, não podia ter pensado em um presente mais confortável. Aqui, com a luz das cinco da tarde cortando o verde das árvores e o rosa das flores, é como se Afrodite pintasse um quadro. Amor e beleza.... Eu respiro profunda e lentamente. Estou preparado. Vejo meu neto ao longe, rindo para sua mãe feliz e recém-casada. Vejo o felizardo do meu genro e com apenas uma tragada de oxigênio experimento a paz. Toco os lábios e recinto mais uma vez, uma última vez quem sabe, o gosto do beijo de Sara que eu ganhara a pouco, mas que conquistara por todos esses anos. São muitos. São tantos, eu nem conto mais. Quando vejo esse céu e sinto tal plenitude, tenho a certeza de que não é mais preciso. A odisseia do homem Lucas chega a seu fim e eu não podia pensar em uma forma mais bela em terminar de escreve-la. Digo então que por isso não o fiz, e quando minha obra alcançou as prateleiras, foram infinitos telefonemas perguntando acerca de um último capítulo que jamais existiu. E o que aconteceu com Amanda? Eles diziam. O ônibus era uma metáfora? Depois que a amnésia passou o Sr. lembrou do que de fato aconteceu? Sim, é insatisfatório a forma como eu tenha deixado tantos parênteses em aberto sobre a história da minha própria vida. Mas como eu poderia terminar de contar sobre algo que ainda não acabou?

-Veja bem – eu disse para o céu – há certas verdades das quais não tenho certeza.

E foi nesse dia, de um mês de setembro, que o céu resolveu atender ao meu apelo e contar-me a veracidade dos fatos. Bastou que eu estivesse pronto e assim que levantei da poltrona e segui em direção a uma estrada verde no jardim da minha propriedade, percebi o verde do chão se unir às paredes e crescer, até que estas se tornaram verdadeiros espelhos verdes. E eu pude ver todos: Sara, tão linda como quando a conheci. Júlia, doce Júlia, ela gostava de tingir os cabelos na adolescência. Elas riam, também meus pais e meu irmão - em sua versão pequenina - riam para mim. Então o cobrador, a moça que gostava de pintar os olhos, a cidade universitária inteira! Refletia o passado em dentes  fantasmagóricos e felizes. E eu fiquei lisonjeado em ver a forma como batiam palmas e reverenciavam-me. O homem misterioso beijava uma mulher chamada Mistério. Formavam um belo casal, pude reparar desta vez, e eu era grato a Deus por revê-los. Amanda apareceu para mim com o mesmo rosto da última vez que a vira e ela sorria segurando um cartaz. “Força Lucas” ela sussurrou e eu continuei a andar. Como poderia escrever sobre isso agora? Não podia, devia continuar a caminhar e a seguir sempre em frente. Sempre em frente. A passagem parecia expandir-se em um verde cintilante e infinito, tão verde que era quase turquesa, tão turquesa que eu podia jurar ser maio. Sentia-me amado e a felicidade estava agora entrando em seu crepúsculo, já, já, no fim do túnel do tempo eu encontraria o luar.

Logo que me despedi de todos e as flores recomeçaram a predominar nas paredes, eu pude perceber em como já me encontrava em tempos de velórios. Um ser amável e sinistro leu tais pensamentos, esperava-me ao fim do corredor. Hesitei. Então o senhor estendeu-me as mãos. Era um convite fatal eu sabia, mas já não havia mais tempo e eu sentia-me bem. Algo naquele homem me acalmava. Como o tranquilizante perfeito para uma viagem estelar. O silêncio do anoitecer permitiu ecoar minhas passadas e quando cheguei próximo ao sujeito a quem panos cobriam as feições, percebi que, se o tocasse, finalmente morreria. Então ficamos os dois apenas a caminhar, ele de costas e eu de frente, por um tempo medido pelas estrelas.

-Sabe o que aconteceu aquele dia no zoológico? – Questionou-me.

-Sei, meu amigo Ben me salvou da campina outra vez.

-Como um anjo?

-Não – respondi – como a morte.

Quando Ben retirou os panos que lhe cobriam a face, sorriu. E eu sorri também porque no fundo a verdade é um mistério e a saudade que eu sentia de Benjamin foi, por muitos e muitos anos, a minha única e comprometedora, verdade. Abraçamo-nos.

 

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